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Diversidade nas páginas, inclusão em cada história.

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Análise Crítica

Análise crítica da coleção pelo renomado autor:

— Júlio Emilio Braz

Ocupação: Escritor, romancista, roteirista de histórias em quadrinhos, escritor de ficção científica

Justificativa

Inquestionavelmente, como fato político e o encerramento de um ciclo dos mais controversos e infames de nossa História, a Abolição da Escravidão nos idos de 1888 se reveste de grande importância. Todavia e de maneira análoga, em termos de reparação social e necessária inserção política, com a competente conquista e reconhecimento dos direitos e deveres comuns à cidadania, mesmo em pleno século XXI, forçoso se faz admitir que se apresenta ainda como persistente dívida à maioria da população brasileira, mas bem ao contrário, como característica mais evidente de uma estrutura que normatizou e efetivamente normatiza as relações étnicas entre nós e principalmente, naturaliza o seu aspecto mais infame que é o persistente preconceito que inibiu, por um lado, a ascensão dessa maioria ainda hoje meramente aritmética e a confina a uma invisibilidade  social por trás da qual jaz em  irremovível subalternidade de piores índices econômicos, e por outro, estruturou-se a partir de toda sorte de estereótipos racistas.

Não foi antes das últimas três décadas do século XX e a partir da luta consistente de inúmeras personalidades e grupos do movimento negro que essa estrutura de evidente injustiça e apagamento cívico passou a ser questionado. Entre idas e vindas uma grande dívida social começou a ser cobrada e dela não se furtou o reconhecimento do papel histórico até então ausente ou amesquinhado em nossos livros escolares e em nossa cultura de maneira geral; no caso da literatura brasileira, um estranho paradoxo, pois se é verdade que numericamente ainda estamos aquém da parcela da população que representamos, também o é que entre nossos melhores autores estão reconhecidos afrodescendentes como Machado de Assis, Lima Barreto, Cruz e Souza, só para ficarmos em alguns exemplos.

Na emergência do século XXI essas políticas reivindicatórias e o combate sistemático ao racismo e ao preconceito em geral se fazem tão necessário quanto cada vez mais assertivo pelo mundo afora, e um dos mais destacados, exatamente por ser cada vez mais necessário, se faz pelo reconhecimento de pessoas negras importantes tanto no passado quanto no presente, no caso do Brasil, lembradas meramente no dia 20 de Novembro, o Dia da Consciência Negra, uma homenagem espúria e por vezes, contestada, por ser o único feriado importante no calendário do país que se apresenta ainda como facultativo. Suas realizações, por vezes superando incríveis dificuldades, mais do que apenas exemplos notáveis, servem cada vez mais de norte às futuras gerações negras, possibilitando o conhecimento de tais personalidades, o inquestionável reconhecimento de seu papel destacado no contexto das sociedades humanas ao longo do tempo, mas abrindo caminho para novas e necessárias reivindicações e questionamentos acerca do fomento de novas vocações, pois a partir das palavras de Barack Obama, que dizia que “a mudança não virá se esperarmos por outra pessoa ou outros tempos”, e que, portanto, “Nós somos aqueles por quem estávamos esperando”, cada vez mais se faz imprescindível a compreensão de cabe a nós nos apropriarmos de nossa própria história e de nossos próprios heróis e seus feitos, para construirmos essa mesma história o mais fidedigna possível. Nesse aspecto, a cultura mas acima de tudo, a literatura pode e deve exercer papel destacado nessa descoberta – resgate de nosso passado, a consecução de nosso novo presente e a busca por um futuro consequente e absolutamente igualitário, autônomo e participativo. Fazendo minhas as palavras de Malcolm X, ou melhor ainda, transformando-as em imprescindível mantra de reconhecimento pessoal, étnico e sócio-político, “uma raça de pessoas é como um homem individual: até que use seu próprio talento, se orgulhe de sua própria história, expresse sua própria cultura, afirme sua própria individualidade, ela nunca poderá se realizar sozinha”, defino à perfeição a necessidade e oportunidade de uma coleção como a Black Power.

President Barack Obama is photographed during a presidential portrait sitting for an official photo in the Oval Office, Dec. 6, 2012.  (Official White House Photo by Pete Souza)

“A mudança não virá se esperarmos por outra pessoa ou outros tempos, nós somos aqueles por quem estávamos esperando”

— Barack Obama

Concebida a partir da compreensão acerca da pertinência de dar consequência a demanda da sociedade negra de se conhecer e se ver representada-inserida como ente constitutivo do mosaico étnico que é o Brasil e da humanidade de maneira geral, contestando a velha e reducionista visão eurocêntrica e de óbvia prevalência branca, sua origem se propõe não apenas a apresentar dezenas de personalidades negras ou sua importância na história da humanidade; bem entendido, não como simplesmente como modelos singulares de pessoas bem-sucedidas apenas por conta de seu esforço individual ou da generosidade de pessoas esclarecidas ou altruístas, principalmente de outras etnias, mas frutos de uma estrutura mais ampla envolvendo famílias e até organizações oriundas de suas distintas comunidades. Dentro de tal visão, o individual não se apresenta como solitário protagonista em todas as biografias selecionadas, mas como parte de estruturas mais coletivas de superação de invisibilidades sociais e subalternidade à miséria e a penúria comuns a estruturas fundamentadas na exclusão e no preconceito e no racismo.

O primordial “Conhece-te a ti mesmo” da antiga Grécia amalgama-se inescapavelmente à afirmação impactante porém de uma verdade sincera de Carolina Maria de Jesus: “Temos só um jeito de nascer e muitos de morrer”. A pior delas é, sem sombra de dúvidas, através da ignorância. Do que fomos, do que somos, e a pior delas, somatório involuntário das duas anteriores, do que poderíamos ter sido.

Box Black Power

A Coleção

A proposta da coleção Black Power foi até certo ponto a de atender a uma reivindicação implícita na revolta de uma frase muito conhecida de Lélia Gonzalez, ao dizer que “estamos cansados de saber que nem na escola, nem nos livros onde mandam a gente estudar, não se fala da efetiva contribuição das classes populares, da mulher, do negro, do índio, na nossa formação histórica e cultural. Na verdade, o que se faz é folclorizar todos eles.”

No que tange especificamente ao negro e ao afrodescendente, desde a sua origem a coleção não pretendia aderir a essa “folclorização” e muito menos se render ao senso comum dos arquétipos tão comuns a visão do negro reduzido a equivocadas contribuições alimentares (feijoada sendo o exemplo mais conhecido) ou culturais (samba, chorinho) e mesmo, a absurdas inclinações eivadas de pseudociência (maior aptidão para determinados esportes), conformado ao que Lima Barreto definia em uma de suas observações mais contundentes e argutas: “negro no Brasil só incomoda quando sai do seu lugar”, o que, em poucas palavras, poderíamos dizer que ele é aceito quase sem constestação quando se apresenta como jogador de futebol mas ainda se constitui em raridade quando surge como técnico de futebol à beira do campo; ou não é visto como corpo estranho quando se apresenta no limite do papel de enfermeiro em qualquer estrutura hospitalar, mas deve se submeter ao escrutínio diário até de pacientes quando é identificado como neurocirurgião na mesma estrutura; algo semelhante acontece quando é o piloto do avião ou proprietário de um carro caro ou importado.

Sem amesquinhar a importância seja dos modelos mais corriqueiros e aceitáveis do futebolista ou do sambista, a coleção resolveu pautar-se pela busca de outros personagens nacionais e internacionais no âmbito de outras relevâncias e competências. Não por acaso iniciou os primeiros volumes com a escritora Carolina Maria de Jesus, verdadeiro fenômeno literário nos anos sessenta do século passado e até alguns anos atrás relegada a um estranho ostracismo e portanto, praticamente desconhecida em sua importância social e até contestada literariamente por setores da crítica e dos meios universitários. A importância política de Nelson Mandela há muito transcendeu os limites da luta contra o regime racista do apartheid que vigorou em seu país de origem a partir dos anos 40 do século XX e se notabilizou por sua extrema violência. Espraiou-se como conceito e modelo tanto de transição pacífica de poder quanto de políticas reivindicatórias para grupos marginalizados mundo afora. Os volumes seguintes apresentaram dois líderes do movimento pelos Direitos Civis nos Estados Unidos: Rosa Parks, a simples costureira que se recusou a ceder o lugar dentro de um ônibus a um homem branco, em um país extremamente segregado em seus estados do sul, e com seu gesto, desencadeou uma grande rebelião que estendeu-se por quase um ano e que culminou com o fim da segregação nas empresas de transporte urbano de passageiros; e o pastor Martin Luther King, Jr, Prêmio Nobel da Paz e liderança inquestionável do movimento antirracista norte-americano, que propugnava pela Não-violência . Os primeiros volumes encerram-se com a biografia de Barack Obama, o primeiro presidente afrodescendente dos Estados Unidos, um paradigma mundial de uma política pautada por elevado espírito público e modelo de uma presidência construída a partir do diálogo e o estrito respeito a pluralidade social e ética.

Os próximos volumes da coleção iniciam-se a partir de um verdadeiro desafio para os autores, pois aborda a polêmica e conturbada, quando não questionada, personalidade de um dos mais interessantes líderes anti-racista norte-americano, Malcolm X. Respeitado por ser exemplo de superação em uma infância e adolescência sofrida, posteriormente, revoltado com sua condição, torna-se um pequeno criminoso, mas em seguida se reinventa pela primeira vez na prisão, tornando-se um militante muçulmano, incluindo em tal transformação a substituição de seu sobrenome Little (renegado por ser aquele que pertencera ao proprietário de seus antepassados escravizados) pelo “X” que o acompanharia até o último de seus dias. Neste período prega abertamente a violência e a separação até mesmo física entre brancos e negros (o que o levou a criticar por muito tempo a postura pacifista de Martin Luther King), verdadeiro desafio para os autores do livro, em princípio mais voltado para o público jovem. Felizmente, como é comum a todo ser humano inteligente, Malcolm X se permitiu o contraditório e transformou-se mais uma vez, abandonando o radicalismo dos primeiros tempos de sua conversão por um discurso mais conciliatório, propugnando por uma sociedade onde brancos e negros seriam capazes de viver em harmonia.

Os três volumes seguintes, dentro da preocupação de descuidar-se e abordar biografias apenas de personalidades masculinas, são dedicados a três importantes vozes negras: as norte-americanas Angela Davis, veterana das lutas pelos Direitos Civis nos conturbados anos 70, uma das mais importantes filósofas da atualidade, e a escritora Alice Walker, célebre por abordar a condição feminina, especialmente da mulher negra (seu livro “A Cor Púrpura” é indubitavelmente a obra mais paradigmática de sua proposta de abordagem notoriamente feminista); e Conceição Evaristo, importante autora afro-brasileira que dedicou sua obra a abordar a condição de profunda resiliência do negro em uma sociedade tão excludente quanto a nossa, além da constituição de uma sólida atividade no meio universitário.

Por fim, esse segundo grupo de livros da coleção Black Power encerra-se com um dos mais trabalhosos volumes da coleção, aquele dedicado aos líderes da última fase de resistência do mitológico Quilombo dos Palmares, Zumbi e Dandara. Aliás, este se impôs como o grande desafio deste volume, qual seja, o de dissociar o mitológico que cerca o casal e amplos aspectos da própria existência do quilombo, de sua verdadeira histórica, controvérsia que os envolve desde que a importância e relevância de Palmares no contexto da discussão a propósito do protagonismo negros nas lutas contra a instituição da Escravidão, foi resgatada pela historiografia moderna em meados dos anos 70 a partir de obras como “Palmares, Guerra de Escravos”, de Décio Freitas, entre outras.

“O meu texto é um lugar onde as mulheres se sentem em casa”

— Conceição Evaristo

Considerações Finais

Como disse Conceição Evaristo: “O meu texto é um lugar onde as mulheres se sentem em casa.”

Eu iria um pouco mais longe. O texto, literário ou não, é o lugar onde nos singularizamos, nos identificamos, nos reconhecemos em nossa unicidade, mas para, a partir de tal descoberta, nos sentirmos como parte de algo maior, mas em absoluta isonomia, igual aos outros nessa coisa grandiosa que identificamos a priori como Humanidade. É neste fascinante aspecto que se insere a coleção “Black Power” e projetos semelhantes: desvelar omissões históricas, revelar e dar voz a personagens e personalidades negras pouco conhecidas ou mesmo ignoradas do mesmo modo que a própria etnia que representam, e mesmo apresentar e redimensionar os mais conhecidos para as novas gerações.

“Não aceito mais as coisas que não posso mudar, estou mudando as coisas que não posso aceitar”, afirma Angela Davis.

Concordo com ela, apenas com três importantes ressalvas: necessito saber antes quem sou, qual o meu lugar neste mundo desde sempre multiétnico, e acima de tudo, que não estou só. A mudança vem como consequência natural dessas três descobertas fundamentais.

Análise crítica da coleção pelo renomado autor

— Júlio Emilio Braz

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